ABORTO COM HOMENS

Um guia narrativo para trazê-los para a conversa

Após intensa mobilização nas redes, o projeto perdeu tração no Congresso, mas algo chamou a atenção: a autoria das manifestações digitais era majoritariamente feminina.

Agora, para abafar o envolvimento de Bolsonaro no plano golpista, a extrema-direita retomou a agenda e uma PEC foi aprovada na CCJ da Câmara.

E a pergunta segue:

Entre maio e junho de 2024, o direito ao aborto foi um dos principais assuntos da política brasileira, devido à tentativa de aprovar o PL 1904/24, que equipara o aborto ao crime de homicídio. 

Por que homens progressistas não falam sobre o tema? 

Para investigar o que eles pensam sobre o assunto e por qual motivo escolhem ficar calados, realizamos uma pesquisa com homens de 25 a 44 anos, das classes B e C, que se autodeclaram interessados por política a ponto de buscar ativamente informações sobre esse tema. Reunimos aqui alguns insights que podem guiar conversas sobre o tema, gerando uma maior conexão e adesão.

O silêncio como forma de evitar conflito… 

Os homens preferem não se manifestar sobre o tema por diversos motivos. Entre os destaques, está o desejo de evitar conflitos: eles consideram o tema polêmico e capaz de despertar discussões acaloradas, principalmente, nas redes sociais. Eles evitam falar do assunto com amigos, familiares e pessoas do círculo profissional, temendo brigas, represálias e julgamentos. Também entendem que há muitas pessoas religiosas por perto deles, o que interdita o debate, aparecendo como mais uma barreira para que se exponham publicamente.

Outro fator que leva ao silêncio é uma mistura de sensação de impotência e falta de informação. Eles sentem que não estão suficientemente informados para defender sua posição de maneira estruturada, o que abre uma janela de oportunidades para capacitar esses homens frente às discussões e mostrar que eles também precisam se envolver.

Casos extremos representam um consenso no debate

Percentual de violência sexual por faixa etária

Vítimas do sexo feminino (2022)

Nota: Microdados do Sinan referentes a 2022 são preliminares e foram coletados fev/2024.

Fonte: Sinan/MS. Elaboração: Diest/Ipea e FBSP.

Quando falamos sobre casos considerados extremos, como as situações em que a interrupção é permitida pela legislação atual no Brasil (gravidez oriunda de estupro, risco de morte para a pessoa gestante ou feto anencéfalo), existe um consenso a favor do aborto.

Não importa a idade ou o interesse por política, nenhum dos homens progressistas que ouvimos acredita que uma pessoa deveria ser obrigada a continuar com uma gravidez nesses casos.

Ou seja, temos uma notícia boa: podemos contar com o apoio desse grupo para não termos retrocessos em relação à legislação atual.

A mulher como única responsável?

Se há algo que a nossa sociedade patriarcal faz com frequência é culpabilizar as mulheres e transferir responsabilidades para elas. Entre os homens com quem conversamos, é comum a crença de que “se a mulher tinha conhecimento para transar, também tinha para se prevenir”, uma ideia que ignora a realidade. Esse pensamento coloca a mulher como a única responsável pela gravidez, desconsiderando a corresponsabilidade masculina e outros fatores envolvidos. 
O grande problema é que muitos acreditam que, se a mulher não quisesse engravidar, ela deveria ter se prevenido — e, em último caso, recorrido à pílula do dia seguinte. Esse raciocínio simplifica a questão, desconsiderando as barreiras no acesso a métodos contraceptivos e a complexidade das relações sexuais.

O lema “meu corpo, minhas regras” não cola com homens

 A partir do momento em que colocamos na mesa casos em que a pessoa gestante simplesmente não quer seguir com a gravidez por um motivo próprio (falta de organização financeira, desinteresse na maternidade, falta de rede de apoio, abandono parental etc.), a conversa começa a divergir. Existem os homens que acham que elas devem sim ter autonomia sobre seus corpos, mas eles são a minoria. Quem é contra essa ideia de acesso a direitos reprodutivos é geralmente mais velho e tem uma grande influência religiosa ou moral.

A religião é uma das partes que constitui as visões de mundo de muitos homens progressistas. Dessa forma, a influência do pensamento religioso ajuda a repelir toda e qualquer aproximação com a proposta de “aborto seguro para todas”. 

Além disso, o argumento baseado na religião é muito forte e persuade facilmente os homens que não são religiosos praticantes, mas eram próximos do cristianismo quando jovens. No momento em que a religião entra em pauta, o assunto se torna uma rua sem saída com pouca possibilidade de retorno, pois qualquer tipo de resposta que desvincule o Estado da religião pode ser levada como uma ofensa pessoal. 

Religião e estigma moral ditam a conversa

Os homens com quem conversamos não são ingênuos – eles sabem que mulheres brancas e de classes mais altas abortam com mais tranquilidade e com riscos menores.  
Dessa forma, enfatizar que leis restritivas de acesso ao aborto prejudicam mulheres de baixa renda, especialmente as negras, é uma narrativa que causa impacto. Ideais progressistas como o senso de justiça e a defesa de uma sociedade mais igualitária são ameaçados quando os homens pensam em mulheres morrendo em clínicas clandestinas devido à vulnerabilidade social.

A desigualdade racial e social é notada

Todos os perfis de homens progressistas que conversamos apontam que a educação sexual é importante para prevenir uma gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis.

A discussão traz diversas pautas, desde proteção às nossas crianças contra abusadores quanto o fornecimento de informações mais qualificadas para adolescentes de baixa renda — que geralmente não têm acesso a isso.

Homens mais politizados tendem a defender uma educação sexual mais ampla, incluindo reflexões sobre consentimento. Já os grupos menos interessados em política focam na prevenção básica, por exemplo, o uso de preservativos. Há perfis conservadores que rejeitam o tema quando o debate começa a trazer questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero.

Educação sexual importa!

  • BRASIL TEM 1 REGISTRO DE MULHER ESTUPRADA A CADA 6 MINUTOS

    Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023)

  • 80% DOS ESTUPROS SÃO CONTRA MENINAS QUE MUITAS VEZES NEM SABEM O QUE É GRAVIDEZ

    Atlas da Violência, IPEA (2024)

  • AOS 40 ANOS, UMA EM CADA SETE MULHERES JÁ ABORTOU AO MENOS UMA VEZ

    Pesquisa Nacional de Aborto – PNA (2021)

  • MORTE DE MÃES NEGRAS É DUAS VEZES MAIOR QUE BRANCAS

    Pesquisa Nascer no Brasil – Ministério da Saúde (2023)

Uma legislação é necessária para existirem limites

O aborto é um tema que costuma despertar um quadro de pânico moral.

É muito comum que a discussão comece a escalar: existe um medo de que uma regulamentação menos restritiva faça com que abortos ocorram com mais frequência, tornando-se algo banal.

Para combater esse medo, é preciso mostrar que abortar é uma decisão complexa e mostrar que as legislações costumam determinar limites para a realização: de tempo da gravidez (não pode ser liberado o aborto próximo aos 9 meses), de quantidade (uma mesma pessoa não pode abortar mais do que um número específico de vezes em determinado período de tempo) e de acompanhamento (é necessário que a gestante receba apoio psicológico antes da decisão de abortar). 

Portanto, por esse ângulo, uma proposta de legislação que garanta não apenas a realização do aborto em si, mas deixe muito claro todas as obrigações e responsabilidades do Estado e da gestante no processo — focando o trabalho de divulgação nessas últimas partes — pode conquistar o apoio desses homens.

Recomendações: 

  • ...mas todo cuidado é pouco no momento de enfatizar isso

    “Não importa o que a sua religião diz” ou “não quero saber o que a bíblia diz” são sempre respostas erradas nos casos em que a religião é pauta da conversa, especialmente se o tom da conversa estiver acalorado. A melhor escolha é contrapor esse tema com outro em que a pessoa já concordou com você, seja desigualdade social/racial, relação mãe e criança indesejada ou aumento constante da quantidade de crianças para adoção que nunca são adotadas.

  • A descoberta mais importante dessa pesquisa foi a de uma narrativa que subverte os argumentos conservadores que afastam o público da ideia de educação sexual nas escolas ao pautar uma ideia que eles odeiam mais: a do número de abortos crescer. Portanto, quando é colocada a relação direta da existência de educação sexual nas escolas com a diminuição de realização de abortos — afinal os jovens terão acesso a métodos contraceptivos e, por consequência, engravidarão menos —, a ideia se torna mais palatável. É relevante testar essa teoria com públicos mais conservadores.

  • O foco da conversa não pode ser a realização ou não do aborto, mas sim o que vem antes e depois disso, enfatizando a conscientização das gestantes, a limitação jurídica do procedimento e as consequências da não realização do mesmo — que pode ser um ponto de virada ao considerar as possíveis dores das crianças geradas.

Foram realizados 04 grupos de discussão on-line, nos dias 25 e 26 de junho, com homens de 25 a 44 anos das classes BC, moradores de Rio de Janeiro e Recife que se autodeclaram interessados por política a ponto de buscar ativamente informações sobre esse tema. 

Todos eles tinham pelo menos ensino médio cursado, e em todos os grupos tinham pessoas de diferentes religiões, composição familiar e etnias. Também mesclamos participantes que se autodeclaram LGBTIAPN+ com aqueles que não fazem parte da comunidade.

Para participar, eles precisavam ter declarado voto em Lula no segundo turno das eleições de 2022  e votaram em Lula, Ciro Gomes ou Tebet no primeiro turno. Excluímos aqueles que acham que o aborto deve ser totalmente proibido em qualquer situação.

Os grupos foram organizados com base na autodeclaração de interesse por política e na faixa etária, divididos em quatro perfis diferentes de homens: 01 grupo com homens jovens (25-34 anos) que têm maior interesse por política, 01 grupo com homens mais velhos (35-44 anos) que também têm maior interesse por política, 01 grupo com homens jovens (25-34 anos) com menor interesse por política e 01 grupo com homens mais velhos (35-44 anos) com menor interesse por política.

Metodologia